19.2.09

Um mundo com vista para o meu quarto















Era mais um português que atravessava a estação de St. Pancras em direcção ao cais de embarque do metropolitano em King's Cross. E tantos havia que ali assomavam em pronúncias dissonantes: desde os clamores quentes do português adocicado, aos sabores provincianos da língua dos desencontros, manobras de sensações sonoras marcadas no mapa de latitudes distantes. Tomava a Circle Line para se prostrar nas estações junto às margens frívolas de um rio que sentia todos os dias andar um bocadinho para trás. Não o perturbava que o seu dia ganhasse forma nos rostos de todos aqueles londrinos emprestados. Distribuía-lhes as notícias da manhã, em parangonas grosseiras e paródias absurdas, interceptadas por sirenes roucas de fuga à liberdade. O relento dava lentamente lugar a um nevoeiro húmido e espesso que se confundia na fuligem que as chaminés permitiam antecipar. Dali partia já com a jorna embolsada para novas viagens, tormentosas viagens, dali para Kensington, depois para Notting Hill, e finalmente Paddington, de onde o comboio o conduzia rápido até aos limites de Reading, cidade submersa numa palidez suburbana, que fazia jus ao nome e o punha a ler os clássicos durante a hora de viagem num comboio com entradas e saídas a trouxe-mouxe. Assim ganhava a vida. Em Notting Hill, biscates na instalação eléctrica de casas vitorianas mais abastadas. Em Kensington, jardinagem, limpezas e uma amiga secreta, colombiana, que o punha a sonhar com o universo de Aracataca, de que ele jamais ouvira falar, mas que imaginava ter lido em Gabriel, sem nunca de facto ter desfiado uma página. E em Reading, auxiliando a soerguer velhinhos e a acreditar que ali se fazia a vida, a sua, ainda que com dedos impregnados de caca e a mente em qualquer outro pensamento. Era este o português que todos os dias regressava à estação de St. Pancras com a noite já muda e o frio cortante do sopro do Mar do Norte. Era o português que depois se divertia no café de um madeirense, onde vislumbrava num ecrã grande as pernas de jogadores portugueses em duplicado, em dérbis lancinantes e apitos diligentes; e onde bebia mais uma cerveja, para depois voltar a sair e ver nas chaminés apenas o castigo de um jogo de bridge. Este era o português que voltava a si mesmo em escassas horas de sono. Ele que dizia a si mesmo "Good Night", apesar de em pouco mais se aventurar no seu inglês tímido do que nuns "thank you", "Welcome", "Good Morning". E na noite, mais um dia começava...

3 comentários:

Anónimo disse...

Olá Bruno,

Ao ler este texto, onde se pode inalar, suavemente, uma textura quotidiana londrina provocou-me saudades de Londres.
Londres tem uma beleza rara, fria mas peculiar devido ao seu grau cultural.

Obrigado por escreveres temas tão versáteis. Parabéns!

Um abraço

Bruno disse...

Olá, Anónimo!
Londres tem um verão excelente.
Mas para mim os grandes mistérios e os grandes interesses de Inglaterra encontram-se para lá da capitsl. Já conheci, mas agora a agulha da minha bússola aponta para outros pólos. E não passam tanto por lá. Embora queira voltar, para comprar livros, respirar a natureza, revisitar museus.

Anónimo disse...

Olá Bruno,

Se gostas de viajar,Itália é um dos recantos maravilhosos. Porém, cada país possui os seus encantos. Bem sei! Mas... Itália é um país que nos deixa fascinados.
Comprar livros, essa é uma das melhores coisas que se pode fazer quando se viaja, pois nada melhor que ler após a descoberta da magia de cada pedaço de terra.

Um abraço