À primeira vista não conseguia encontrar relação entre o amor que sentira por Londres quando a conhecera pela primeira vez, e o amor que deixara em Lisboa, quando dela se despedira na colina dos aflitos, por entre lágrimas de crocodilo, a mirar o Tejo e a deitar contas aos tostões da vida. Reconhecia bem serem amores diversos, daqueles que não se explicam e nem se anulam, antes se completam e fazem pensar várias vezes antes de enfrentar uma ribanceira de decisões difíceis. Fê-lo sem olhar para trás. Juntara-se aos milhões de forasteiros daquela urbe cinzenta ia para três anos. Uma casa em Ladbroke Grove, com renda paga a meias com outra estrangeira. Todos os dias, enfrentava a rua com um umbrella recolhido na bolsa. Recebia o primeiro jornal da manhã das mãos de um desconhecido de rosto afunilado dentro de um gorro quente, e continuava sem pressas a fruir a salgalhada de vozes que exercitavam récitas perras em busca do sotaque mais cumpridor. O seu rosto contempla e triunfa. Divertia-se com os canalhas que açambarcavam carteiras no metro. Reconhecia-lhes tiques e frustrações. À noite voltava a Ladbroke Grove, invocava pressas e deixava-se cair na cama à procura das memórias que lançara pela janela quando se deportou de Lisboa e por lá deixou um pedaço de vida. Guiara os sentidos para um prato de frango "peri-peri" quando por uma vez decidiu experimentar o Nando's, cujo "bom proveito" que a seguia por todos os recantos do estabelecimento não a remetia para Portugalzíssimo nenhum. Desencontrou-se dos sabores do país naquelas asas de frango, e decidiu-se a experimentar um outro restaurante em Stockwell Road, onde os sotaques lusos eram bem mais aprimorados, e cujos condimentos de portugalidade a levaram por momentos a recuperar os encantos do país. Mas ali não regressou por não se rever naqueles homens e mulheres anacrónicos, a viver da herança de um Portugal que deixara já de existir. E passou a parar num pub italiano, onde reencontrava colegas de investigação, onde voltava a ganhar vida o bico de Bunsen, e se recuperavam as conversas sobre balões, condensadores, e tubos de ensaio. Mas pelo menos uma vez todos os dias, o metropolitano voltava a conduzi-la às reminiscências da Lisboa de sempre. Até ao momento em que uma voz a advertia: "mind the gap"...
24.2.09
Um mundo com vista para o meu quarto (II)
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