23.3.09

A Guerra do Futebol














O estatuto editorial deste blogue não contempla conversas à volta desse tão martirizado universo que é o do futebol, até porque quando se fala em bola as pessoas exaltam-se, interpretam geralmente com o coração e desprendem-se da razão, originando equívocos e instigando farpas. O que se passa dentro das quatro linhas por lá fica. E o que sobra para esta reflexão é a espuma do acontecimento.

Não vou debruçar-me sobre a validade ou não da grande penalidade que esteve na origem da polémica deste fim-de-semana. Quem tiver visto poderá fazer a sua análise melhor do que eu.

Interessa-me sim compreender a dimensão simbólica de que se reveste um jogo com a duração de noventa minutos. Sociólogos ou psicólogos encartados poderão explicar melhor como se processam estes fenómenos de metonímia, que serão talvez dos aspectos mais importantes para a compreensão do fenómeno do futebol e da sua representação enquanto ideal simbólico. O espectador revê-se na dispersão dos jogadores sobre o relvado e replica-se nas contingências da equipa ao longo de um encontro de futebol. Trata-se de uma representação da sua vida: o confronto com a sorte, o azar, as injustiças, a matreirice, os roubos, o falhanço, a glória, o logro, o engano, a estratégia. O futebol é a representação da vida: revemo-nos na nossa equipa, e o outro conjunto surge como a representação de todos os obstáculos que surgem na nossa vida. Com a grande diferença de que ali tudo se pode remediar no fim-de-semana seguinte, na época seguinte, na taça seguinte. Ao passo que na vida real não existe semana seguinte, nem dia seguinte, ou pelo menos não é possível parar a nossa existência até lá chegarmos, existe um continuum, uma engrenagem sempre em movimento.

O futebol um campo de batalha

A situação em Portugal não atinge as dimensões catastróficas que se reconhecem, por exemplo, na realidade latino-americana. Por lá, a força do futebol é também a sua fraqueza. A paixão pelo jogo é também aquilo que o destrói.

Na Colômbia, as ameaças de morte a jogadores, treinadores, dirigentes e até jornalistas não são raras. Em 1994, depois do Mundial nos Estados Unidos, o jogador Andrés Escobar foi brutalmente assassinado com 12 tiros junto ao restaurante "Estadero El Indio". O motivo: ter marcado um golo na própria baliza na derrota contra os Estados Unidos. (ver aqui)

Em 1969, um jogo das eliminatórias de qualificação para o Mundial de Futebol, entre as selecções das Honduras e de El Salvador, originou uma guerra. Antes do encontro, adeptos hondurenhos ameaçaram e pressionaram fortemente a selecção adversária. Os jogadores salvadorenhos acabaram por ceder uma derrota por 1-0, já nos instantes finais da partida. Em El Salvador, a esperança da qualificação para o Mundial dá lugar ao desânimo e em consequência uma jovem de 18 anos acaba por se suicidar. O acto foi transformado num martírio nacionalista, o funeral teve honras de Estado, e a cobertura mediática do acontecimento encarregou-se de transportar a emoção patriótica a todos os cantos do país.

No jogo da segunda mão, de visita a El Salvador, a selecção das Honduras tinha à espera um verdadeiro inferno. A coragem de dois adeptos hondurenhos que ousaram deslocar-se ao estádio adversário para apoiar a sua selecção valeu-lhes a morte. Foram assassinados. As represálias não se fizeram esperar. Nas Honduras, os emigrantes de El Salvador foram perseguidos e mortos. Os dois países cortaram relações diplomáticas, e um mês depois do primeiro duelo dentro das quatro linhas um bombardeamento da força aérea salvadorenha incendiou os ânimos e incitou a uma guerra que durou quatro dias e provocou três mil mortos: ficou para a história como “a guerra do futebol”. (ver aqui ou aqui)

Os poderes do futebol

Não surpreende que o futebol se tenha tornado refém das cúpulas de poder, visto como meio de potenciação dos ideais de nação e veículo privilegiado de propaganda utilizado por vários regimes ditatoriais ao longo da História mais recente.

Mas essa integração do futebol como símbolo privilegiado de representação identitária não é exclusiva dos regimes autocráticos, até porque a grande força do futebol emana da sua democraticidade e do seu interclassismo.

Esta ideia de representatividade é rejeitada em países que congregam num mesmo estado diferentes comunidades ou povos, como Espanha ou Bélgica. Nem por isso os ânimos mais particulares deixam de se congregar numa única selecção nacional que engloba em si as várias nações. A força e a particularidade do futebol leva a que cada elemento desses diferentes povos se reveja na mesma representação simbólica, a sua selecção.

No pólo contrário, e atentando para este género de construção simbólica, encontramos o caso do Reino Unido, que não actua no campo do futebol como selecção única, mas se decompõe nas várias representações de cada um dos povos da união: Inglaterra, Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte.

No entanto, a ideia de que uma equipa de futebol representa um país, uma cidade ou uma região é, em termos práticos, falaciosa, na medida em que os clubes representam apenas um conjunto de associados e as selecções nacionais se apresentam como representantes da federação do respectivo país, não suportando qualquer vínculo de representação administrativa ou diplomática desse Estado.

A importância do futebol, enquanto fenómeno aglutinador de massas e de emoções, não pode passar ao lado da ideia de construção da identidade. As equipas de futebol são entendidas como os novos exércitos, e as consequências das suas vitórias ou dos seus fracassos reflectem-se com maior intensidade do que as vitórias ou os fracassos nos campos de batalha convencionais.

Esta importância só pode ser compreendida à luz da força simbólica que o futebol foi sabendo construir. Porque, vistas bem as coisas, é apenas um jogo, são apenas quarenta e quatro pernas á procura de chutar uma bola para dentro da baliza adversária. E são apenas noventa minutos. Há formas bem mais interessantes de nos chatearmos por causa de hora e meia de correria e lançamento da gosma.

sugestões:

DYNAMO - Defending the Honour of Kiev
Uma história de resistência no período da Segunda Guerra Mundial, que relata o jogo entre as forças da Luftwaffe e o FC Stat, e equipa de Kiev, outrora designada Dínamo de Kiev. Tem versão em português do Brasil, mas não me recordo o nome.

GOAL DREAMS
Um documentário sobre a preparação da selecção de futebol da Palestina para o Mundial de 2006

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