9.3.09

Autor e Narrador: ambiguidades e desafios

"O que queremos é uma história que comece com um terramoto e que vá a pouco e pouco para o clímax"

SAMUEL GOLDWYN (1879-1974)

Para começar, penso eu, o que precisamos aqui é de um narrador, um bom narrador. Um narrador que faça aquilo de que eu não sou capaz, narrar, mexericar, daqueles narradores totalmente libertos de conotações perigosas, de suspiros corporativistas, e totalmente perversos, revolucionários mesmo. Com a ideia de saberem tudo sobre todos, quando afinal pouco mais sabem do que uma realidade limitada pelo início da história que contam e o seu epílogo, circunscrita pelo conhecimento que o autor lhes confere, e que assenta numa intimidade falsa entre ambos, em que o autor dispõe e manipula e oculta, e o narrador ingenuamente confia.

O Autor, um homem de estatura elevada, na casa dos cinquenta, ia batendo afadigadamente um texto na sua máquina Remington. A ela se referia com o orgulho de quem balouça um filho nos braços, e dando a entender que não era apenas uma máquina de escrever, ou unicamente o intermediário entre ele e os seus leitores, mas que auferia o estatuto de personagem, passível de se enredar em conflitos, como qualquer herói, mandante, ou adversário. Apresentava-a sob o título de Remington, não se entendendo ao certo se tal designava uma criatura do sexo masculino ou do sexo feminino.

O Autor escrevia sobre um autor acometido de um bloqueio criativo praticamente crónico. procurando confundir o leitor em manobras de estilo autobiográfico, servindo-se repartidamente da sua voz e da voz emprestada de um narrador, independente, inequívoco, omnisciente, sintético, e que por estranho acaso é a voz que agora se vos dirige.

O Autor não sabia sobre o que havia de escrever. Afogava-se no seu estilo demasiado analítico e mal conseguido, enfadonho para a maioria dos leitores, circulando em torno de uma só ideia que assentava nisto: a sua incapacidade para encontrar ideias e a suposta justificação para esse falhanço. E isso ia-se revelando tão frouxo que as justificações encalhavam num discurso redondo, mal preparado, esculpido sob um manto de palavras de ângulos fechados ou de frases com demasiados vértices.

Este autor, pouco digno desse nome, não só por se duvidar que fosse capaz de dar corpo à obra, mas também por demonstrar uma inquietante falta de autoridade sobre o texto, acordou no primeiro dia de primavera e deparou-se com uma vontade imensa de escrever. Mas escrever sobre o quê? Ou sobre quem? Não tinha uma ideia. Era preciso assumir um plano de operações. Era preciso encontrar um narrador. Um narrador que tudo soubesse, que fosse determinado e forte, e que ousasse entender a posição de onde estava a partir, aonde desejava chegar, e qual o percurso a seguir até lá.

O Narrador começou a falar. Narrou três ou quatro parágrafos em que nada se acrescentava ao já conhecido. Alguns ter-se-ão perguntado: se o Narrador nada acrescentou ao que tinha já sido dito, para que precisamos dele, porque nos é negado o contacto mais próximo com o verdadeiro autor, as suas indagações, conflitos interiores, descrenças? Por isso mesmo, porque o Autor entendeu que o Narrador iria defendê-lo das incongruências do discurso e, caso tudo redundasse em fracasso, sempre poderiam ser atribuídas as culpas à ineficiência do narrador, justificando o logro com a sua educação básica, meio social onde cresceu, a sua condição e preceitos sociais de que se norteava. Sabendo toda a gente que o autor assume sempre um conhecimento infinitamente superior ao de qualquer personagem, narrador, ou leitor, o Narrador não se opôs a qualquer dos pensamentos do Autor e entendeu que a delegação do encargo foi até uma medida muito inteligente. Na verdade, outra opinião não se esperaria de um mero subordinado. O Narrador cumpriu. Marcou a sua posição, o seu estilo, a sua forma de estar. E continuou.

2 comentários:

Fernando Coelho disse...

o Autor Autua

o narrador narrua

ou seja, o autor é o policia

o narrador é o ladrao...

ainda nao sei é quem é o prefacio, mas acredito que possa ser o emplastro... nao serve para nada mas tá lá sempre...

Bruno disse...

Está bem visto. Percebe-se que tiveste uma formação de qualidade, na Escola Secundária por onde andaste. Grandes professores por lá. Ou então não. Mas recordo-os com saudades, gostaria de saber por onde andam alguns. Mas isso é história para outros dias.

Acho que o autor é o que vive mais angustiado. É uma espécie de empresário do têxtil com a corda na garganta, sempre à procura de dinheiro para pagar aos funcionários ao fim do mês.